domingo, 22 de março de 2015

"Os Supremos" foi um dos maiores sucessos Marvel da década passada


Depois de criar o selo Marvel Knights para revitalizar a sua linha de revistas, e assim superar o limbo criativo que a Casa das Ideias havia se lançado durante os anos 90, o golpe de mestre da editora veio com a criação do universo Ultimate no ano 2000. Além de significar uma porta de entrada para novos leitores, que por si só era uma ideia batida já naquela época, esse universo representou um reforço criativo revitalizante para a editora, que até hoje capitaliza com as ideias surgidas dessa iniciativa. Os recentes filmes da Marvel, por exemplo, bebem diretamente dos conceitos introduzidos pelo universo Ultimate, tanto em quesitos visuais (como os uniformes de couro dos X-Men) quanto dramáticos (como a dinâmica existente entre os heróis em Os Vigadores).

E se a Marvel quisesse dividir o "bicho" desse sucesso todo, poderia começar reconhecendo o papel que Mark Millar teve quando essa iniciativa ainda era nada mais do que uma aposta. Embora sua importância rivalize com a de Brian Michael Bendis (que assumiu o Ultimate Spider-Man), Mark Millar se destacou tanto com suas histórias em Ultimate X-Men, que recebeu da Marvel carta-branca para fazer a versão Ultimate de nada menos do que dos Vingadores, ou dos Supremos, se usarmos o nome recebido pela equipe dentro do novo universo.

Só que seria difícil imaginar o sucesso do título sem a arte de Bryan Hitch. Tida como cinematográfica por muitos, por emular em muitos momentos a concepção widescreen das telas de cinema, seu traço é marcante sobretudo em razão do seu nível de detalhamento. Foi o melhor do trabalho de sua carreira até agora. Parece que todos os quadro receberam o mesmo cuidado do artista, são raras, por isso, as ocasiões em que fundos neutros são usados. Os seus painéis, de tão sensacionais, esconderam bem a limitação do roteiro de Millar, sobretudo no arco Segurança Nacional. Prestes a assumir a arte da revista da Liga da Justiça (com roteiros de Geoff Johns) a expectativa é que Hitch repita o bom desempenho

Quanto à trama, ela funcionou muito bem enquanto Millar se ateve aos dramas internos existentes dentro da própria equipe (durante o arco Super-Humanos), principalmente aos problemas conjugais de Hank Pyn e Janet Pym e do descontrole de Bruce Banner/Hulk. Mas quando o pano de fundo virou a invasão alienígena o roteiro deglingolou sensivelmente, embora o nível de ação, e consequentemente do impacto da arte de Hitch, tenha compensado tudo. O que acontece é que a grandiloquência do tom de Mark Millar ás vezes me incomoda, e a solução que ele dá a sua histórias geralmente não estão no mesmo nível de sua proposta inicial. Todavia, Os Supremos, ao final, foi um sucesso absoluto, entregando tudo aquilo que a Marvel precisava naquele momento: um arrasa-quarteirão que não fosse o Hulk.

Como eu já havia escrito em outra coluna por aqui, Millar é craque em escrever histórias cinematograficamente apelativas, que poderiam perfeitamente se transformar na principal aposta de qualquer estúdio durante um verão americano. Hoje, publicando pela Image, parece que ele está tentando fazer obras diferenciadas, com tramas mais elaboradas, como Jupiter's Legacy e Starlight, mas durante sua passagem na Marvel, a pegada era essa mesma: muita ação, pancadaria e personagens marcantes.

Os Supremos
Ultimates #1-13
**** 8,0
Marvel | março de 2002 e abril de 2004
Salvat | outubro de 2013 e fevereiro de 2014
Roteiro: Mark Millar
Arte: Bryan Hitch
Arte-final: Paul Neary e Andrew Currie
Cores: Paul Mounts

domingo, 15 de março de 2015

Sem abandonar o terror das histórias clássicas, Alan Moore fez de Monstro do Pântano clássico instantâneo


É mesmo uma pena ver que um personagem como o Monstro do Pântano, com todo seu potencial e história, tão pouco aproveitado assim, tendo, inclusive, sua revista recentemente ido para a vala comum dos cancelamentos. Esse também seria o destino de A Saga do Monstro do Pântano em 1984 se quase desconhecido chamado Alan Moore não tivesse assumido os roteiros, que até então estavam nas mãos de Martin Pasko. A troca de roteiristas seria a última desesperada jogada afim de resgatar o título, tanto é assim que o editor (e também criador do personagem ao lado de Martin Wolfman), Len Wein, aceitou a exigência do jovem Moore de liberdade total para as suas ideias.

Funcionou. Logo na primeira edição (#20) sob o comando do roteirista inglês já vemos a qualidade narrativa da obra, embora ela tenha servido apenas para fechar todas as histórias que vinham se desenrolando nas edições anteriores. Decisão mais acertada foi manter os artistas, que também tinha sido outra das exigências de Moore. Stephen Bissete e John Totleben souberam dar vazão ao tom mais solene e trágico que dominou a revista. Alguns experimentalismos, apesar de pontuais, também aumentou a qualidade da obra.

Na edição seguinte (#21), temos um clássico da nona arte. A Lição de Anatomia é simplesmente fabulosa, uma daquelas histórias que fica em nossa mente muito tempo depois de lida e que corrobora a tese de que os quadrinhos fornecem recursos quase ilimitados de expressão. A começar pela narração inicial:

"Chove em Washington esta noite. Pingos graúdos e mornos de verão pintam manchas de onça nas calçadas. No Centro, velhas senhoras correm às sacadas carregando vasos de plantas como se fossem parentes doentes ou filhos únicos."

A partir daí todas as bases sobre as quais o personagem Monstro do Pântano estava assentadas sofrem reformulação. A mais impactante delas foi fazer que o Monstro deixasse de ser Alec Holland após as consequências do acidente em seu laboratório. Depois da anatomia feita pelo Homem Florônico (antigo vilão da DC, conhecido também por ser o criador de Hera-Venenosa) no corpo do Monstro, ele descobriu que a consciência de Alec havia sido absorvida pelo pântano após o acidente. O pântano, então alterado pela fórmula biorrestauradora em que Alec trabalhava, teria absorvido os seus restos mortais e, por extensão, sua consciência. O Monstro do Pântano, portanto, não seria outra coisa além do próprio pântano achando que era Alec Holland, que na verdade estava morto.

Embora não tenha havido uma quebra de continuidade abrupta (tanto que personagens como Abigail e Matt Cable permaneceram), Moore reinventou a série, construindo praticamente do zero uma das fascinantes mitologias dos quadrinhos: a do monstro atormentado por uma humanidade que lhe é estranha, da qual nunca fez parte, mas que não para de o influenciar. Tão planta quanto sempre foi, mas agora também irremediavelmente humano.

Por fim, vale mencionar que a tão criticada escolha da Panini de usar o papel pisa brite na coleção não me atrapalhou em nada. Na verdade, até achei melhor, pois o "papel jornal" me remete às lembranças das ótima histórias de terror dos anos 70 (das quais o Monstro do Pântano deriva diretamente). Parece que histórias de terror como essa foram feitas especificamente para esse tipo de papel, de forma que um papel mais nobre desnaturaria um pouco impacto da arte. Seria como ver um filme de terror de luz acesa.

A Saga do Monstro do Pântano - Livro Um
The Saga of Swamp Thing #20-27
***** 10
DC | janeiro a agosto de 1984
Panini | abril de 2014
Roteiro: Alan Moore
Arte: Stephen Bissete e John Totleben
Cores: Tatjana Wood

domingo, 8 de março de 2015

Metalinguístico, "Reino do Amanhã" adapta conflitos reais à temática de super-heróis


Acredito que hoje em dia seja lugar comum encarar o heroísmo típico dos quadrinhos americanos como uma espécie de aplicação da ideologia fascista, ou, trazendo algo mais afeito a realidade americana, com a política do Big Stick implantada pelo presidente norte-americano Theodore Roosevelt em suas relações diplomáticas. Afinal, existe conduta mais propensa aos exageros das políticas acima mencionadas do que o vigilantismo? Foi nesse terreno que Mark Waid e Alex Ross conceberam em 1996 o clássico Reino do Amanhã.

Nos anos 90, os quadrinhos mainstream americanos não havia, salvo raras exceções, mergulhado na tendência da autocrítica, aliás, se encontrava povoado se personagens muito semelhantes ao meta-humanos: violentos e impiedosos. Uma leitura crítica do heroísmo era incomum, nem que fosse apenas como pretexto para criar as mesmas histórias de sempre. Alex Ross já tinha tangenciado o assunto na sua obra Marvels, em que joga os super-heróis dentro de um contexto mais realista, numa tentativa de aproximar os dois mundos. Mas parece que ele não havia dito tudo o que pretendia. Havia ainda algo a ser dito, tanto que logo após sugerir a proposta de Reino do Amanhã aos editores da DC, Mark Waid foi chamado para os roteiros, em boa parte graças ao seu amplo conhecimento do Universo DC.

Esse conhecimento foi bastante exigido na construção da obra, por onde desfilam praticamente todos os super-heróis da DC, no meio de uma guerra civil sem precedentes entre os heróis clássicos e os meta-humanos, tidos como a "evolução" daqueles personagens que todos nós conhecemos. Só que esses novos vigilantes estão mais cruéis, insensíveis, de modo que a última coisa que lhe passa pelas cabeças é os interesses daqueles que deveriam ser principal preocupação: os humanos. A velha guarda então precisou cancelar a aposentadoria e tentar combater a ameaça que ficava cada vez mais nociva. Mas como?

É aí que entra a passagem mais, digamos, social da obra, ao passo que até o próprio Superman (imaginem) é corrompido pela imperatividade de eliminar o mal representado pelos meta-humanos ao dar-lhes a seguinte opção: a submissão às regras de comportamento por eles ditadas (ao arrepio da consulta humana) ou o enquadramento compulsório. Uma prisão foi construída, e todos aqueles que não seguissem a cartilha seriam lá enclausurados. Nada mais radical e autoritário do que isso. Bruce Wayne, pressentindo a tragédia, vira o contraponto dessa nova política da maioria da velha guarda dos heróis.

Foi sintomático, portanto, que Superman não aceitasse mais ser chamado de Clark, alegoria perfeita para representar a sua perda da humanidade, cuja recuperação foi soberbamente representado no simples ato de colocar de volta os óculos de Clark Kent recebidos de presente da Mulher-Maravilha. Com poucas imagens, muita coisa foi dita. É essa característica, que se repetiu em dezenas de outras passagens, que fazem de Reino do Amanhã um clássico dos quadrinhos. Antes que uma aventura, uma reflexão sobre o que pode acontecer com os quadrinhos de super-heróis se a tendência de histórias dos anos 90 se mantivesse; ou, sob outro prisma, uma olhadela sobre os perigos que qualquer política fascista pode representar à sociedade.

Reino do Amanhã - Edição Definitiva
Kingdom Come #1-4
***** 9,0
DC | maio a agosto de 1996
Panini | novembro de 2013
Roteiro: Mark Waid
Arte: Alex Ross

domingo, 1 de março de 2015

Em seu primeiro trabalho na Image, Morrison ficou devendo

Happy!, Devir

Em tempos de lançamento do aguardado Nameless, de Grant Morrison e Chris Burnham, vale a pena falar um pouco sobre a primeira contribuição do roteirista escocês para a Image Comics, Happy!. A minissérie emquatro edições foi lançada pela Devir no final do ano passado, aproveitando a ambientação natalina que tem presença marcante na obra. Havia muita expectativa sobre como Morrison ia se sair com uma série de sua propriedade, já que a maior parte do seu trabalho foi para editoras como DC e Marvel que não cedem os direitos dos personagens aos seus criadores, além de praticarem uma conservadora política de royalties. Na Image, a autonomia de Morrison é praticamente total.

Happy! conta a história do ex-policial Nick Sax que, após ser expulso da corporação, passa a ganhar a vida como assassino de aluguel. Quando o seu último serviço dá errado e ele se torna alvo de seu próprio cliente, Sax começa a ter alucinações com um cartunesco cavalinho azul voador chamado Happy. Mas apesar de clima de piração total que a essa sinopse pode denotar, o fato é que Happy! é uma das obras mais pés-no-chão recentemente escritas por Morrison. Há muita pouca daquele rebuscamento e pretensão que é marca de suas histórias. E até por isso a leitura do encadernado é fluída é pode ser feita numa "sentada só", sem que o leitor seja assaltado por reviravoltas mirabolantes ou por intrincadas entrelinhas a cada final de página, como acontece em Os Invisíveis, por exemplo.

Talvez por isso ou não que a qualidade da série não faça jus a reputação de Morrison, uma vez que a história, embora curta, seja arrastada e de pouca objetividade. Ela poderia muito bem ser resumida em duas edições, a primeira e a última. Esse meio de campo compreendido pela segunda e terceira edição é praticamente preenchido pela incredulidade de Nick Sax em dar crédito aos avisos de Happy, que poderia muito bem ser cortado sem prejuízo para a intelecção da obra. Por isso, a trama demora a engrenar e quando isso finalmente acontece é tarde demais, e o desfecho se dá de forma apressada.

A leitura vale realmente a pena por causa da arte de Darick Robertson (Transmetropolitan e The Boys), cuja arte está visceral como nunca. Todo o mérito pelo impacto que a obra eventualmente possa ter se dá em razão de seu lápis, ainda que nas última edições ele tenha perdido muito de sua qualidade (a série sofreu com atrasos e não conseguiu ser lançada a tempo para o Natal de 2012).

Mas decisão nenhuma chega a ser tão desastrosa quanto a da Devir quanto ao modo de lançamento da obra. Mesmo para um encadernado capa dura, é exorbitante cobrar 56 reais por ele, ainda mais se considerar que são apenas 136 páginas. O resultado disso é que pouquíssimas pessoas terão acesso à obra. Pra piorar, parece que esse vai ser o padrão seguido pelos demais lançamentos da Image por aqui, como ocorreu com Ministério do Espaço, Projeto Manhattan e Saga.

Happy!
Happy! #1-4
**** 6,5
Image | setembro de 2012 a fevereiro de 2013
Devir | novembro de 2014
Roteiro: Grant Morrison
Arte: Darick Robertson
Cores: Tony Avina