terça-feira, 28 de abril de 2015

Fase de Garth Ennis a frente de Hellblazer começou com arco memorável


Comparada com os dias de hoje, a DC dos anos 80 e do começo dos anos 90 deixa ainda mais saudades. Eu não consigo imaginar hoje a editora mantendo tamanha lealdade ao espírito de um de seus título do modo como manteve com Hellblazer. Primeiramente, cabe lembrar que John Constantine foi criação de Alan Moore nas páginas de sua A Saga do Monstro do Pântano. Quando o personagem ganhou sua revista própria, outro inglês foi chamado para comandar o título, e a passagem de Jamie Delano se provou antológica e até hoje é lembrada pelos fãs. Ao fim de sua passagem, o que a DC fez? Novamente foi ao Reino Unido e chamou o então proeminente roteirista Garth Ennis para dar um upgrade na revista.

Não se trata apenas de Constantine ser um genuíno inglês, com seu senso de humor peculiar e introspecção que beira a arrogância, não, o título Hellblazer como um todo emana de suas páginas um clima lúgubre bastante apropriada ao clima sombrio e melancólico de Londres. Dificilmente, um roteirista americano saberia transmitir toda essa aura que paira sobre a capital inglesa. Vemos isso perfeitamente no arco Hábitos Perigosos, que deu início a nova fase de republicação da fase clássica de Hellblazer pela Panini. A história seguinte ao arco (O Pub onde eu nasci), por exemplo, aborda mais de perto um elemento cultural genuinamente inglês: os seus famosos bares.

Em seu primeiro trabalho para o mercado norte-americano, Garth Ennis fez uma estreia de impacto, construindo uma história antológica que até hoje é referenciada como uma das melhores da saga do mago inglês. Em Hábitos Perigosos, num primeiro momento, o principal perigo não espreita a partir da magia, de demônios ou qualquer outra coisa que o valha, dessa vez o golpe veio de perto. De muito perto. O cigarro finalmente cobrou o seu preço, e um câncer terminal de pulmão anunciou os dias finais de Constantine.

Não tem como negar que foi uma sacana genial de Garth Ennis fazer do câncer um vilão. Inclusive, esse plot serviu de base para o roteiro da adaptação cinematográfica do personagem de 2005, estrelada por Keanu Reeves. Realmente, todo aquele cigarro que Constantine fumou uma hora voltaria para assombrá-lo. Contudo, para que a história fosse um sucesso era necessário um final coerente, já que os quadrinhos estão cheios de boa ideias mal executadas ou terrivelmente finalizadas. Felizmente, o desfecho de Ennis aparou as pontas soltas da trama, de forma que o último quadro do arco ilustra bem o estilo da prosa de Ennis: de dedo médio em riste, Constantine manda três demônios sedentos de vingança para aquele lugar.

Por fim, não dá para não elogiar a iniciativa da Panini de dar sequência a republicação do material clássico de Hellblazer. Dessa vez ele capricharam mais ainda no tratamento do material, ao trocar o papel piza brite (que, é bom mencionar, não desgostava, muito menos prejudicou a fase "Origens") pelo papel LWC. Isso tudo sem perder de vista o preço acessível. Uma pena só eu não estar podendo acompanhar a publicação da fase do Peter Milligan (a última da revista) que também está saindo atualmente. Material altamente recomendado.

Hellblazer Infernal: Vol. 1 - Hábitos Perigosos
Hellblazer #41-48
**** 8,5
DC | maio a dezembro de 1991
Panini | abril de 2014
Roteiro: Garth Ennis
Arte: Will Simpson e Mike Hoffman
Arte-final: Malcolm Jones III, Tom Sutton e outros
Cores: Tom Ziuko

domingo, 19 de abril de 2015

Estreia de Desafiador representa o primeiro grande trabalho do então iniciante Neal Adams


Umas das coisas mais legais da DC é o seu universo sobrenatural, composto por personagens tão incríveis quanto enigmáticos, como Desafiador, Vingador Fantasma, Espectro, Constantine, Sr. Destino, Etrigan, Zatanna, até mesmo o Monstro do Pântano de Alan Moore frequentou com habitualidade essa parte do Universo DC, às vezes até mesmo fazendo uma incomum ponte entre eles e os super-heróis clássicos da editora. Muito desses personagens foram criados no seio das revistas de terror dos anos 60 e 70. Desafiador foi um deles.

Sua primeira aparição se deu na revista Stange Adventures #206 (de novembro de 1967), fruto das mentes de Arnold Drake e Carmine Infantino. Seu nome é Boston Brand, o maior trapezista do mundo, e que trabalhava num circo até sua carreira ser interrompida por um atentado cometido contra ele no meio de um número, custando-lhe a vida. Ocorre que Brand não morre, permanecendo numa espécie de limpo de existência imaterial que, segundo a entidade Rama Kushna, durará até ele se vingar de seu algoz. Sem poder ser visto por ninguém, Boston  tem como principal recurso poder assumir a consciência de outras pessoas e agir por meio do corpo dela.

A edição de estréia, em que a origem é contada, bem como as quatro histórias seguintes de Stange Adventures foram compiladas pela Opera Graphica em 2003 no encadernado Desafiador - Vingança Além da Vida. Apesar das histórias estarem em preto e branco, a edição prestou um bom serviço aos quadrinhos ao lançar pela primeira vez no país a gênese desse personagem tão interessante, sem falar na oportunidade conferir a elegante arte do ainda iniciante Neal Adams. Essa edição da Opera ainda teve o mérito de trazer um esclarecedor editorial contando, em linhas gerais, a trajetória do Desafiador.

Dentre o exposto, vale a pena mencionar que Arnold Drake, durante a concepção do personagem, se valeu de alguns elementos de misticismo e do hinduísmo, fruto de seu contato com a cultura hippie, que estava em plena ascenção nos EUA na década de 60. Tanto foi assim, que Drake chamou a divindade que concedeu os poderes para Boston Brand de Rama Kushna, um anagrama claro de Rana Krishna. Essa alteração de nome foi um subterfúgio de Drake para tentar fugir do radar do Comic Code Authority, embora ele não ter havido problemas com o nome original do herói, Deadman.

É evidente que o Desafiador está longe de ser um personagem com todo o apelo que os demais heróis do primeiro escalão da DC possui, mas não se pode negar o potencial que possui essa faceta sobrenatural do universo. Ao lado dos demais de nomes como Especto, Vingador Fantasma e Constantine, as possibilidades narrativas são amplas. Talvez seja por isso que o diretor Guilhermo Del Toro tenha se interessado em adaptar para os cinemas a Liga da Justiça Sombria, que deve ser considerada, vale a ressalva, separadamente da atual revista dos Novos 52, que teve um início de qualidade bem ruim.

Desafiador - Vingança Além da Vida
Strange Adventures #206-210
**** 7,0
DC | novembro de 1967 a março de 1968
Opera Graphica | setembro de 2003
Roteiro: Arnold Drake, Jack Miller
Arte: Carmine Infantino e Neal Adams

domingo, 12 de abril de 2015

Os rumos de Murdock/Demolidor sofre grandes mudanças no último encadernado da série de 2011


O encerramento da terceira série do Demolidor em 2014, seguido da renumeração em razão do evento All-New Marvel Now (eu quase já não consigo mais acompanhar essas iniciativas editoriais) foi cercada de uma peculiaridade incomum nesse tipo de medida. Ao contrário do que geralmente ocorre, quando o relauch marca a estreia de uma nova equipe criativa (geralmente seguida de uma guinada diferente nos rumos da série), com Demolidor ocorreu exatamente o contrário. A equipe criativa composta por Mark Waid, Chris Samnee e Javier Rodriguez permaneceu no comando. E mais: a revista segue exatamente do ponto em que o número 36 do volume 3 se encerra.

Não que a revista precisasse de um sangue novo. A fase de Waid a frente do título tem sido muito boa, mantendo o alto nível das histórias que escritores do calibre de Frank Miller, Ed Brubaker e Brian Michael Bendis estabeleceram. Ocorre que a Marvel (e, em menor escala, a DC também) são obcecadas por revistas #1. Elas incrementam as vendas e significam uma oportunidade para dar novo rumo aos personagens. Essa segunda justificativa, pelo menos, parece se encaixar ao caso do Demolidor. O fim do volume 3 significa o fim (momentâneo pelo menos) de uma característica simbólica das histórias do herói, algo praticamente já integrado em sua mitologia: Nova York.

Durante toda essa fase, que se iniciou em 2011, Waid deteriorou muito a identidade secreta de Matt Murdock e isso serviu de combustível para muitas histórias, sobretudo aquelas que envolveram o seu relacionamento com a promotora Kirsten McDuffie. Foggy Nelson nem se fale. Não é de hoje que existe quase um alvo pintado em sua testa por causa do seu relacionamento com Murdock/Demolidor. Esse novo elemento dramático pelo qual esse run ficou marcado ajudou muito Waid a evitar velhos chavões das histórias do Demolidor. Veja que nem foi preciso de uma história com o Rei do Crime para a série ser boa. Aliás, a atual fase também está marcada pela ausência de vilões fortes. Com a exceção da aparição de um vilão aqui e outro ali, nenhum deles antagonizou especialmente o herói. A ameaça difusa dos Filhos da Serpente nos poderes públicos de Nova York representou o verdeiro mal a se combater.

Ocorre que nesse final, que compreende as edição 31 a 36, a série não ostentou o ritmo de outrora. As tramas continuaram divertidas sim, mas parece que faltou criatividade no desenvolvimento de algumas histórias. Vide a participação do Polichinelo e Elektra, que se mostraram, ao final dispensáveis. Claro que, numa lógica de uma revista mensal, em que é difícil fugir da dinâmica "caso da semana", o resultado ficou pra lá de satisfatório. Mas é que fica aquela sensação de que a história tinha potencial para coisa melhor.

Apesar disso, espero muito dessa nova fase da revista que se iniciou em 2014, principalmente porque veremos Demolidor começando vida nova em São Francisco, bem longe da Cozinha do Inferno. Felizmente, a Panini confirmou a continuidade da série de encadernados, inclusive mantendo a continuidade da numeração e do formato. As expectativas estão altas.

Demolidor - Volume 6
Daredevil #31-36
**** 7,5
Marvel | novembro de 2013 a abril de 2014
Panini | outubro de 2014
Roteiro: Mark Waid
Arte: Chris Samnee, Jason Copland e Javier Rodriguez
Cores: Javier Rodriguez

sábado, 4 de abril de 2015

"Trees" subverte as expectativas do gênero e foca na reação humana frente ao desconhecido


Cria da escola inglesa de roteiristas e egresso no mercado norte-americano através da cunhada segunda invasão de roteiristas britânicos, Warren Ellis é um dos maiores expoentes do meio. Sua carreira é marcada desde a origem por histórias provocativas e bem sucedidas. E o tempo parece não ter arrefecido a sua genialidade, de forma que continua extremamente prolífico, apesar de já ser um veterano na área. Depois de um período sem grandes trabalhos, Ellis despontou em 2014 com pelo menos três obras de qualidade, como Supreme Blue Rose (com a bela arte de Tula Lotay), o retorno de Moon Knight (com Declan Shalvey) e, finalmente, Trees, pela Image, em parceria com Jason Howard.

Esse ressurgimento tem muito a ver com a ótima fase da Image Comics, que tem servido como o abrigo ideal para quadrinistas finalmente contarem suas histórias sem a típica castração editorial imposta pelas majors (leia-se DC e Marvel). Esse papel já foi do selo Vertigo durante os anos 90 e no início da década de 2000, mas hoje a maioria dos principais profissionais dos quadrinhos possui um projeto na editora, ainda que continuem com seus trabalhos na Marvel e DC. Scott Snyder, Kurt Busiek, Jason Aaron, Jeff Lemire, Brian K. Vaughan, Jonathan Hickman, Ed Brubaker, Greg Rucka, Matt Franction, Grant Morrison, todos eles estão escrevendo ou estão com um projeto de série para a editora. A liberdade criativa, na maior parte das vezes, está garantindo o alto nível das obras que tem saído, que, apesar de ainda não ter catapultado as vendas das edições avulsas, tem feito muito sucesso no formato encadernado. Tanto é assim que dentre as 25 graphic-novels mais vendidas em 2014 nos EUA, 17 são da Image.

Warren Ellis empacou as já mencionadas e Supreme Blue Rose e Trees. Esta possui uma premissa interessantíssima: o que aconteceria com o mundo se de repente surgissem em todo árvores gigantes que subissem bem além das nuvens. Porém, o surgimento desses colossos não foi seguida de uma invasão alienígena, nem nada do tipo. Sua presença é estática, ainda que sua sombra e influência seja visivelmente opressiva. Ellis começa explorando justamente o impacto que esse mistério tem sobre os humanos, como nós lidaríamos com um mistério aparentemente insolúvel e sem motivo evidente.

A história possui diversos núcleos e, bem lentamente, vamos acompanhando a história de algumas pessoas frente ao desafio de viver nesse novo mundo. De fato, se você está esperando batalhas com alienígenas, ação desenfreada, pode ser que você fique decepcionado com os rumos que a série toma nesse primeiro arco. Ellis preferiu explorar os dramas eminentemente humanos que brotam dessa súbita consciência da pequenez humana à sombra dessas árvores. Mas ele deixa aberta a porta para a ficção-científica e para um pouco de ação, ainda mais se considerarmos as perspectivas que o final do arco deixou para a sequência da obra. Olhos atentos em Ellis!

Trees - Volume 1
Trees #1-8
**** 7,5
Image | fevereiro de 2015
Roteiro: Warren Ellis
Arte: Jason Howard