Mais empolgante que as aventuras de Corto Maltese talvez só tenha sido a história de vida de seu criador, Hugo Pratt. Não somente sua carreira como artista que é digna de nota, mas sua vida pessoal foi tão atribulada e aventuresca que não é de se admirar que a sua principal criação tenha se notabilizado pela precisão e exuberância de sua narrativa. Pratt esteve nos dois lados da Segunda Guerra Mundial, como prisioneiro dos nazistas e (depois de liberto) como tradutor e produtor de shows para o lado dos aliados. Em 1949, mudou para Argentina onde fundou a "Escola de Veneza" ao lado de quadrinistas célebres como Héctor Oesterheld, Mario Faustinelli, Dino Batagglia, Paolo Campani e Alberto Ongaro, ao lado dos quais criou outros personagens tão marcantes quanto o marinheiro sem nau.
As aventuras de Corto Maltese são frutos da fase mais madura de Pratt, criadas após o seu regresso à Itália em 1965. Foi com A Balada do Mar Salgado que ele deu início a tudo, apresentando o seu personagem de espírito livre, rebelde e ousado em boa parte inspirado por escritores clássicos também identificados com a temática sobre viagens, como Robert Luis Stevenson, Ernest Hemingway e Rudyard Kipling. Muito além da óbvia referência, Pratt expandiu o gênero na medida em que adicionou um componente visual inconfundível, composto ora por uma aquarela pesada, composto por blocos de nanquim, ora por um traço fino e delicado. Tudo isso, aliado a um senso incrível de fluidez narrativa e dinamicidade do traço, fez com que Pratt revolucionasse a forma como os quadrinhos são vistos: mais como arte e menos como uma manifestação cultural menor.
A Balada do Mar Salgado é também uma história incrível. Não só pela história em si, mas também pelo modo como ela é contada. O talento de Pratt proporcionou uma infinidade de cenas inesquecíveis e diálogos sem igual. O caráter dúbio de Corto deixa o roteiro completamente imprevisível para o leitor de primeira viagem e, convenhamos, há poucas coisas mais chatas do que heróis românticos. Maltese, ao revés, é o legítimo anti-herói. Não está preso às regras e convenções e age conforme lhe aprouver no momento. Não guarda ressentimentos e possui palavra. Talvez essas características pareçam contraditórias, mas Pratt as deixa perfeitamente críveis e pertinentes.
Balada se passa durante a Primeira Guerra Mundial no sul do Oceano Pacífico, lugar em que os alemães se aliaram a piratas locais para abater embarcações comerciais em busca de recursos. No centro das negociatas está Raspoutine, um dos mais odiáveis personagens dos quadrinhos (no bom sentido, claro) e antagonista direto de Maltese. Este, com o perdão do trocadilho, embarca nessa por acaso. À deriva no mar após ser expulso da embarcação daquele em que viajava, Corto é resgatado pela por Rasputin, que o envolve na sua trama contra os alemães.
A partir daí se desenvolve esse épico marítimo, com inúmeros desdobramentos e reviravoltas. Em nenhum momento ao longo de suas mais de 160 páginas a leitura se torna monótona. Pratt demonstrou exímia habilidade na construção de seus personagens e condução dos acontecimentos, sem perder de vista o elemento visual. Desse casamento perfeito entre texto e desenho que se pode compreender o porquê dessa obra ser considerada clássica.
Corto Maltese - A Balada do Mar Salgado
Corto Maltese: La Ballade de La Mer Salée
***** 10
Casterman | 1963
Pixel | janeiro de 2006
Roteiro e Arte: Hugo Pratt