domingo, 8 de março de 2015

Metalinguístico, "Reino do Amanhã" adapta conflitos reais à temática de super-heróis


Acredito que hoje em dia seja lugar comum encarar o heroísmo típico dos quadrinhos americanos como uma espécie de aplicação da ideologia fascista, ou, trazendo algo mais afeito a realidade americana, com a política do Big Stick implantada pelo presidente norte-americano Theodore Roosevelt em suas relações diplomáticas. Afinal, existe conduta mais propensa aos exageros das políticas acima mencionadas do que o vigilantismo? Foi nesse terreno que Mark Waid e Alex Ross conceberam em 1996 o clássico Reino do Amanhã.

Nos anos 90, os quadrinhos mainstream americanos não havia, salvo raras exceções, mergulhado na tendência da autocrítica, aliás, se encontrava povoado se personagens muito semelhantes ao meta-humanos: violentos e impiedosos. Uma leitura crítica do heroísmo era incomum, nem que fosse apenas como pretexto para criar as mesmas histórias de sempre. Alex Ross já tinha tangenciado o assunto na sua obra Marvels, em que joga os super-heróis dentro de um contexto mais realista, numa tentativa de aproximar os dois mundos. Mas parece que ele não havia dito tudo o que pretendia. Havia ainda algo a ser dito, tanto que logo após sugerir a proposta de Reino do Amanhã aos editores da DC, Mark Waid foi chamado para os roteiros, em boa parte graças ao seu amplo conhecimento do Universo DC.

Esse conhecimento foi bastante exigido na construção da obra, por onde desfilam praticamente todos os super-heróis da DC, no meio de uma guerra civil sem precedentes entre os heróis clássicos e os meta-humanos, tidos como a "evolução" daqueles personagens que todos nós conhecemos. Só que esses novos vigilantes estão mais cruéis, insensíveis, de modo que a última coisa que lhe passa pelas cabeças é os interesses daqueles que deveriam ser principal preocupação: os humanos. A velha guarda então precisou cancelar a aposentadoria e tentar combater a ameaça que ficava cada vez mais nociva. Mas como?

É aí que entra a passagem mais, digamos, social da obra, ao passo que até o próprio Superman (imaginem) é corrompido pela imperatividade de eliminar o mal representado pelos meta-humanos ao dar-lhes a seguinte opção: a submissão às regras de comportamento por eles ditadas (ao arrepio da consulta humana) ou o enquadramento compulsório. Uma prisão foi construída, e todos aqueles que não seguissem a cartilha seriam lá enclausurados. Nada mais radical e autoritário do que isso. Bruce Wayne, pressentindo a tragédia, vira o contraponto dessa nova política da maioria da velha guarda dos heróis.

Foi sintomático, portanto, que Superman não aceitasse mais ser chamado de Clark, alegoria perfeita para representar a sua perda da humanidade, cuja recuperação foi soberbamente representado no simples ato de colocar de volta os óculos de Clark Kent recebidos de presente da Mulher-Maravilha. Com poucas imagens, muita coisa foi dita. É essa característica, que se repetiu em dezenas de outras passagens, que fazem de Reino do Amanhã um clássico dos quadrinhos. Antes que uma aventura, uma reflexão sobre o que pode acontecer com os quadrinhos de super-heróis se a tendência de histórias dos anos 90 se mantivesse; ou, sob outro prisma, uma olhadela sobre os perigos que qualquer política fascista pode representar à sociedade.

Reino do Amanhã - Edição Definitiva
Kingdom Come #1-4
***** 9,0
DC | maio a agosto de 1996
Panini | novembro de 2013
Roteiro: Mark Waid
Arte: Alex Ross

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