Se você tem algum conhecimento sobre a trajetória das histórias em quadrinhos através do tempo, certamente já deve se ter deparado com a informação de que Will Eisner, com a sua obra Um Contrato com Deus e Outras História de Cortiço, inaugurou a tradição das graphic novels. Aqui o termo é encarado como uma espécie de marco da transformação das HQ's de algo predominantemente voltado às crianças em algo de relevância artística. Seria como se os quadrinhos tivessem saído da adolescência e atingido a idade adulta e ganhado maturidade.
Hoje, já se contesta muito se foi Eisner mesmo quem deu origem às narrativas gráficas, sobretudo se tivermos em vista o cenário dos quadrinhos europeus com a revista A Suivre e sua proposta de "bande dessinée adulte". Independentemente disso, é certo que Eisner inegavelmente foi um dos principais vetores do movimento graphic novel ao estampar essa expressão na capa de seu Um Contrato Com Deus, mesmo que ele não tenha alcançado a época grande sucesso. E esse tardio sucesso da obra se deve, pelo menos em parte, ao total desconhecimento da livrarias quanto ao material que tinham em mãos. Até que descobrissem, a obra foi alocado em seções tão díspares quanto literatura religiosa e publicações humorísticas
A obra consiste em quatro contos independentes que compartilham o mesmo ambiente: a Avenida Droopsie. Aliás, se levarmos em conta a ambientação, essa obra viria a formar uma trilogia com outras duas A Força da Vida (1988) e Avenida Droopsie: A Vizinhança (1995), que também se passam na mencionada avenida. Em todas elas, os becos e cortiços do lugar constituem um personagem autônomo, tão desenvolvido e profundo como qualquer outro. Mas em O Contrato com Deus o foco no ambiente é menor e Eisner centraliza suas atenções no elemento humano.
No conto "Um Contrato com Deus" acompanhamos a história de Frimme Hersh, cuja fé foi totalmente destruída por causa da morte de sua filha, pois Deus teria descumprido um contrato firmado com ele quando ele ainda era jovem. Enquanto Hersh dedicaria a sua vida para fazer o bem, Deus precisaria protegê-lo de todo o mal. Mas a tragédia com sua filha fez dele outra pessoa, transformando-o em uma pessoa amarga e aproveitadora. Esse novo estilo de vida fez dele um magnata, com dinheiro suficiente para prometer uma grande monta de dinheiro para uma sinagoga, em troco de os rabinos forjassem um novo contrato dele com Deus, dessa vez com a benção "oficial".
O que poucos sabem é que essa história é quase autobiográfica. Eisner a escreveu como uma forma de exorcizar os seus próprios demônios internos, uma vez que sua única filha morreu de leucemia aos 16 anos. Para ele, o conto serviu com uma forma de eliminar a "raiva contra uma divindade que eu acreditava que havia violado a minha fé" (CHUMACHER, Michael. Will Eisner: um sonhador nos quadrinhos. São Paulo: Globo, 2013).
Artisticamente, pode se escrever muito sobre o que representou a obra para os quadrinhos em geral. Para fins desse singelo texto, enfatizo a intenção de Eisner dar o máximo de unidade entre texto e imagem. Para tanto, empreendeu várias medidas como fazer muito uso de quadros sem borda, texto pendurado no próprio cenário (fazendo menos uso de balões), além de dispensar a colorização, fazendo com que texto e imagem tivessem a mesma identificação visual (reforçando a unicidade entre tais elementos). Para maiores informações sobre essa obra que é uma das mais fundamentais dos quadrinhos, recomendo fortemente a leitura do livro Will Eisner: um sonhador em quadrinhos, de Michael Chumacher.
Um Contrato com Deus e Outras Histórias de Cortiço
A Contract with God and Other Tenement Stories
***** 10
Baronet Books | outubro de 1978
Devir | maio de 2007
Roteiro e Arte: Will Eisner